Luís Fernando Veríssimo e o aborto
Às entranhas
Por Luís Fernando Veríssimo
A questão da liberação ou não do
aborto é uma questão antiga como a tragédia grega. Em Antígona, escrita
séculos antes de Cristo, Sófocles já tratou do que é, no fundo, o que se
discute hoje, os limites da intervenção do estado na vida e nas crenças
das pessoas. Antígona quer enterrar seu irmão, morto em guerra contra
Tebas, e por isso condenado pelo rei de Tebas a permanecer insepulto. A
peça é sobre o confronto de Antígona com o rei Creon, do sentimento com a
lei, do indivíduo com o Estado, do poder da compaixão e dos rituais
familiares com o poder institucionalizado e prepotente. A lei de Tebas
proíbe o sepultamento do irmão de Antígona, que se rebela e o enterra
assim mesmo, com o sacrifício da própria vida. Em gerações ainda por
vir, o confronto de Antígona e Creon se repetirá. No caso do aborto, em
países como o Brasil em que a legislação a respeito ainda não foi
modernizada, a intervenção do Estado chega às entranhas da mulher. É a
lei que decide o que a mulher deve fazer ou não fazer com o filho
indesejado, ou que ameaça a sua vida. E esta é uma decisão que deveria
acontecer o mais longe possível de qualquer consideração legal, no
íntimo da mulher, que é dona do seu corpo e do seu destino. Nem é
preciso lembrar que a legislação atrasada força mulheres a recorrer ao
aborto clandestino, em condições precárias, com riscos que não
existiriam no caso da legalização.
Discute-se quando começa a vida, o
que equivale a fixar em que ponto o feto, de acordo com a lei, passa a
ser protegido do Estado. Mas do começo ao fim da gestação o feto faz
parte do corpo da mulher. O ideal é o processo se completar sem
interrupção, ninguém quer a banalização do aborto, mas até a criança ser
"dada à luz" ela pertence à mulher, a quem cabe tomar decisões sobre
sua vida tanto quanto sobre sua própria vida. O Estado não tem nada a
fazer neste arranjo particular, salvo assegurar as melhores condições
possíveis para o parto ou para o aborto.
Sem sepultura. A analogia com a peça
de Sófocles também serve para o que se pretende com a investigação do
que houve durante a repressão aos contestadores do regime militar. No
caso, a analogia é ainda mais apta, pois um dos objetivos da tal
Comissão da Verdade é localizar os corpos dos insurgentes mortos, que
permanecem não insepultos, mas em covas desconhecidas, enterrados sem
cerimônias ou identificação. Antígona quer que o Estado devolva o corpo
do seu irmão à família, para enterrá-lo. Ele não pertence mais ao
Estado, nem a quem o armou para atacar o Estado. Não pertence mais à
História. Agora é apenas um irmão morto sem uma sepultura digna.

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