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Quando Mariela anunciou
que iria pegar suas coisas, Everton rasgou em pedacinhos o cartão que contava a
história do casal. Esfacelou como um pão.
O cartão descrevia como
eles se conheceram, narrava os melhores momentos de seis anos juntos, apontava
as expressões que somente os dois conheciam e que formavam um dialeto engraçado
e comovente. Era o cartão de todos os cartões. Uma aliança de papel.
Tinha o tamanho de um
cartaz. Para não ter mesmo lugar para guardar. Para repousar nas prateleiras
como um porta-retratos, para ser exibido entre os vasos como um quadro, para
surgir entre os objetos de estimação como uma escultura viva.
Homem de poucas frases,
que nunca escrevia, Everton superou seu laconismo e resolveu o atrasado da
linguagem em longo testamento.
Pediu até para uma amiga
professora de Português corrigir, não querendo passar vergonha com erros de
ortografia.
As rosas que
acompanhavam o texto secaram em uma semana, o que ficou foi a letra dele. Pois
o cartão sempre será a pétala que não murcha, mais importante do que o buquê
porque é a memória do buquê.
Possuído pela fúria,
Éverton sequer pensou duas vezes. Esfarinhou a homenagem em suas mãos. Chorou o
que podia com os cortes violentos das margens. Os dedos, afiados em tesoura,
desfiguraram o conjunto. Com o pedido de separação, buscou se vingar destruindo
sua declaração de amor. Sua única declaração de amor.
Depois do vandalismo,
ligou para Mariela:
– Venha pegar suas
roupas, mas saiba que rasguei o cartão que lhe dei.
– O cartão era meu, não
podia ter acabado com ele.
– Você acabou comigo, o
que adianta o cartão?
– Não fala desse jeito.
Onde ele está?
– Está no lixo.
– Vai lá e recolhe os
pedaços.
– Nunca. Nunca mais me
abro para nenhuma mulher.
Éverton desapareceu de
casa por uma semana, a fim de deixá-la livre a separar e encaixotar seus
pertences.
Ao regressar,
surpreendeu-se com o cartão que havia rasgado em cima dos travesseiros.
Todo colado. Todo
remontado. Um trabalho de recorte e cole tão imenso quando o dele de escrever.
O cartão lembrava o
vitral de igreja que se casaram, com os retângulos formando as imagens da
caligrafia.
Estava ainda mais
bonito. Mais iluminado.
Ele esqueceu o boicote e
telefonou para Mariela:
– Qual o sentido de
recuperar o cartão? – perguntou.
– E você ainda acha que
a gente não tem conserto?
Com o gesto
absolutamente esperançoso, eles se prenderam um ao outro.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto
Alegre (RS), 25/08/2013 Edição N° 17533
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